A CARTA


Mulher lendo, 1891 - Renoir

Feche os olhos, e ouça só a minha voz.
A musica que toca é Wonderful Life – Huts... Aquele clima de prazer começa a fluir em cada poro. Elas sussurram palavras, desejos, pedidos.
Vem aquele suspiro, ela se mexe na cadeira contraindo as pernas. Acabou de sentir aquela sensação que vem de baixo quando se lembrou daquele momento. O carro, o cheiro do perfume gostoso, o ato.
De repente vem aquele beijo. Aquele que dá frio na barriga, arrepios, gemidos mudos e incontroláveis.

A musica para. Aquele dia já passou

Ela foi encontrada morta. O camarim não tinha sinais de luta ou arrombamento. Ela estava no chão e parecia dormir.
É possível ir para um lugar pior do que ela já vivia? Com medo do sim, ela pediu que alguém lhe tirasse a vida, assim apenas Deus se encarregaria de enviá-la para algum lugar. O lugar que por direito lhe pertence.
Seu corpo tinha um cheiro adocicado, e ela carregava uma expressão calma. Ao lado havia várias folhas escritas. Ali ela deixara a mostra seus desejos e por ironia do acaso, há uma carta inacabada.

“Meu amor
Aprendi por tantos anos te ocultar que hoje não saberia lhe chamar de outra forma. É apenas MEU AMOR. Por tanto tempo me tiraram o direito de dizer seu nome, e por isso peço que não se chateie se pensarem que essa carta não se destina a você, pois sei que logo a reconhecerá, e aposto minha própria vida que é você quem a esta lendo agora.

Acredito que todos um dia ganham a grande chance de mostrar seu único lado bom. O meu seria esse, quieta, calma e reflexiva. Eu que passei tanto tempo contradizendo o que achava errado, acabei me limitando a margem. Reflito sobre nós, e eu tinha razão, nunca houve tempo demais para nós. Nunca houve nós. Houve eu e você.O que me conforma mais é saber que logo atrás de mim está você. Você sempre esteve em toda parte e eu nunca estive sozinha. Para onde eu vou certamente você também vai. Alias, já desconfio que estejas aqui. Olhe só, estamos lendo essa carta juntas!

O que vou lhe dizer agora é o que talvez já saibas. Eu te amo, e te amar era o que precisava acontecer. Nós inventamos um novo sentimento no qual não tem nome. Podemos chamá-lo do que quisermos. Em certos momentos chamei de liberdade, saudade, vontade... Isso porque ainda não encontrei uma palavra maior ou mais forte. Há tanta coisa que nunca fizemos que nem saberia por onde começar.

Nunca tomei chuva com você. E nunca pude ver como as gotas cairiam sobre seus ombros, e jamais saberei dizer se você me cobriria com seus braços se estivesse frio.

Nunca pude gastar um domingo no sofá procurando um canal na TV e jamais saberei dizer se brigaríamos pelo controle remoto.

Nunca liguei brigando com você por não arrumar a cama de manhã e jamais saberei se depois da briga, iríamos bagunçar a mesma cama fazendo amor à noite.

Nunca pude dizer aos nossos amigos que iria te consultar antes de programar nosso final de semana. E jamais saberei se você iria preferir cinema ou bar.

Nunca poderei dizer se nossas diferenças nos atrapalhariam ou se um dia enjoaríamos dessa vida. Mas se era pra dar certo, ai sim que jamais saberia.

Nunca saberei como seria chegar em casa depois do trabalho e ter você me esperando na porta.

Nunca pude planejar férias que coincidissem com as suas, e jamais poderia montar um álbum de fotos com esses momentos.

Nunca pude me perder na estrada com você, e acabar rindo disso depois.

Nunca pedi pra você pegar mais um cobertor nas noites de frio, e nunca aninhei no seu corpo em forma de C, pedindo pra me esquentar. Ou nunca cheguei a pedir pra você se afastar por causa do calor.

Por que isso já acabou, eu acabei. E como suspeitava, terminou antes que pudesse começar.
Por isso, eu tenho que te dizer uma coisa, e isso eu nunca disse... _______________”

A carta tem um traço comprido de tinta de caneta preta. Como se após as reticências, o tempo fosse interrompido de súbito. Não houve tempo para as ultimas palavras. Farta da vida, ela decide então nem fazer força pra voltar. Sem saber, SEU AMOR, cai de joelhos, e chora com a carta nas mãos. SEU AMOR não sabe, mas o que ficou por dizer, e nunca foi dito, era que apenas SEU AMOR era capaz de lhe trazer de volta. Sem saber, ela a deixa morrer.


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